MINHAS VISITAS
Cada visita é de um jeito,
dificilmente uma é igual a outra. Mesmo que eles estejam do mesmo jeito, têm
reações diferentes.
Hoje minha mãe estava diferente. É
como se ela tivesse tido um progresso. Já conseguiu falar uma frase, pois, antes
começava e esquecia. Ela continua no mundo dela, mas ri, participa, olha em
volta. Penso que seria uma melhora dentro do seu quadro clínico, afinal agora
se alimenta direito, bebe água e sucos com frequência, o que pode fazer o
organismo reagir. Quanto ao meu pai, ele estava mais ranzinza. É uma agonia não
saber o que isto significa, porque ele aparenta lúcido, fala normal, mas quem
conhece, está acostumado, percebe que aquilo não faz sentido. Já quem não está
acostumado, acha que ele está com razão nas coisas que fala. Por exemplo, ele
pedia para comer, sendo que tinha acabado de comer. Quem não sabe como
funciona, tanto a cabeça dela quanto a casa, acha que realmente ele está com
fome! E ele acabou de comer. Pede para andar, para sair. Quem não acompanha
acha que faz sentido as vontades dele, como se possível ele fazer aquilo tudo.
Até para mim que já estou acostumado, chego a pensar que ele sabe o que está
querendo. Mas entre uma fala e outra ele faz algum comentário que se percebe
que não tem muito sentido. Os momentos de lucidez dele e as reações são
diferentes.
OUTRA
Ele reclama que não tem dinheiro
para fazer nada, que queria estar em casa, que não está comendo. Sendo que ele
acabou de comer! Perguntei para que ele queria dinheiro, se estava faltando
alguma coisa e ele disse que não. Falei que em casa ele dormia o dia inteiro,
não queria fazer nada, se isolava, não ia a rua. Na verdade, quando ele fala
isto não é uma reclamação infundada, mas é uma reclamação por estar
insatisfeito por alguma coisa, pela sua limitação. As lembranças do passado, de
como era em casa, das coisas que fazia e agora a situação dele é outra. Antes,
em casa, ele comprava coisas até que não ia usar, comia mesmo sem vontade, por
costume, por gosto, para passar tempo. Agora não pode ser assim, tem que seguir
uma dieta, comer nos horários. Provavelmente ele não sabe para que quer
dinheiro e sair. Mesmo para quem acompanha como eu, fica meio complicado de
entender, mas com um pouco de presença de espírito se percebe que é uma lembrança,
um costume. E conforme ele vai falando ele diz que quer cortar cabelo em outro
andar, quer ir na loja (e aponta) e daí percebe-se que não é momento de
lucidez. É um comentário feito em cima de uma associação, de uma junção de
ideias que estão confusas naquele momento. Ele andava muito e quer andar
atualmente, só que agora não tem como, ele está sem firmeza nas pernas devido à
doença e também ao tempo que ficou no hospital. Quem não está acompanhando vai
jurar que ele está lúcido e que ele tem certeza do que está falando, eu mesmo
fico meio confuso e caio na real. Ele mesmo esquece do que falou e muda o
assunto, o que me faz perceber que ele já esqueceu e que era momento de memória
dele, comprometida.
Mesmo com a doença, alguma coisa
funciona, de maneira confusa.
Ele precisa da disciplina para
comer, horários, dietas, água. Não pode comer errado, por que uma refeição que
ele deixa de fazer por ter comido alguma besteira antes, pode fazer falta. Ele
fica sem paciência e sem concentração: não quer ler, não quer ver televisão.
Tem alguma lembrança sim, uma associação de alguém, de algum fato que vai
provocar um desejo que nem ele sabe o porquê. Hoje eu vi que ele lanchou e
quase chorou por estar com fome! E se desse algo para comer ele ia comer! Mas
ao mesmo tempo poderia comprometer a próxima refeição e tirar dos horários
certos de alimentação, perdendo o ritmo. Quando eu saí para falar com a
enfermeira e voltei ele não falava mais da fome, ele já tinha esquecido. Ele
não estava com fome, na verdade.
Cada um tem sua característica
pessoal e isto reflete na doença e no comportamento atual. Ele andava muito,
ficava muito na rua e agora ele não quer outra coisa, quer andar, ir para rua.
Cada um tem seu sintoma. Ele associa um pensamento, uma lembrança, um comentário
ou algo que passa pela cabeça mesmo. Agora ele não pode andar pelas isquemias
que teve que comprometeram as partes motoras, pela internação, pelo quadro em
geral. No hospital ele ficou dois meses com fisioterapia só para não “enferrujar”
e não para tonificar – nos hospitais não fazem fisioterapia para tonificar. Ele
ficou debilitado, com a musculatura enfraquecida. Mesmo com a fisioterapia
atual ele não vai recuperar de uma hora para outra e nem pode forçar pois ele
tem os problemas vasculares.
Ele insiste em levantar porque
acha que tem forças, é automático, mas não tem força, mesmo que
inconscientemente ele queira. Ele não quer ler, nem companhia, ele quer sair,
andar. Cada um vai ter sua necessidade e a dele é usar as pernas e não a
cabeça. Ele tenta levantar, mas não consegue. Colocamos ele em pé e ele não
conseguiu se manter, mesmo nós segurando e ele com um pouco mais de forças nas
pernas do que antes, não é mais o suficiente para ele ficar de pé.
LEMBRANÇAS
Fico meio mal quando vou embora de
lá.
Quando vejo meu pai querendo fazer
as cosias e não poder, fico péssimo. Ele nem sabe o porquê das coisas que pede,
que quer fazer. Ele não tem noção das coisas que estão acontecendo, do que está
fazendo ali e se confunde onde está: tem hora que acha que está em casa ou no
hospital ou no trabalho. É muito triste, estranho.
Fico triste por saber que ele está
confuso. Ele pede para ir a um lugar e aponta dizendo que tem uma loja, que tem
algo que não existe! Ele olha como se afirmasse estar vendo alguma coisa que
não há. Percebo a mesma situação em outros pacientes, que também querem ir
“ali” sendo que não tem o “ali”. Quer ir naquela loja. Que loja? Acho que é uma
condição que tinha antes, de poder andar para onde quisesse, e acha que pode
fazer isto, só que nem sabe o que quer fazer realmente. Desconfio que seja
alguma memória de movimento. Outros ficam parados ou mexendo na roupa ou
falando baixinho. Cada um retrata um pouco da sua experiência de vida, uma
coisa muito pessoal.
Tem os sintomas e as reações que dependem
muito das vivências que tinham antes, na juventude ou antes da doença aparecer
que tiveram de andar, de interagirem com as coisas, de serem mais discretos, de
serem mais falantes, de serem oprimidos, de serem oprimidos e agora poderem se
“libertar” ... enfim, cada um tem seu cada um, sua particularidade, tanto meus
pais quanto os outros pacientes. Os sintomas são vários assim como o
comportamento, mas acredito que estão ligados diretamente à personalidade e à
vida que tiveram antes.
COBRANÇAS
IMPOSSÍVEIS
Quando vou lá percebo que o que eles mais querem
e/ou precisam eu não posso dar: não posso dar a juventude de volta, não posso
dar a saúde de volta, não posso fazer o tempo voltar, não posso.
Os familiares acham que o filho não faz porque
não quer, que tem tratamento mas que não está sendo feito. Pergunto: se
tivesse, por que eu não faria? Seria muito menos sofrido e doloroso tentar
alguma coisa do que presenciar a decadência deles.
Sinto-me muito cobrado por isto, por que
quando alguém chega e pergunta por algo “que não está sendo feito” cai em mim
como uma dúvida a meu respeito, como se eu não tivesse fazendo o que poderia.
Na verdade, o que acontece é um desgaste do
tempo e da idade. Não tem muito o que fazer, infelizmente.
Se o doente não tem consciência da doença, da
situação em que se encontra, não vai entender. Depende mais da mente do
paciente. Se ele não tem ideia da limitação que veio pela doença que por sua
vez se instalou por diversos fatores e todos eles independentes de mim, nada
posso fazer para reverter a situação. Acham que fazendo exercícios, melhora. E
não melhora! Dependendo do estado de saúde, pode melhorar a parte motora, mas
não a mente!
O organismo de cada um é único, não existe
parâmetros exatos. Os profissionais de saúde falam que os sintomas fazem parte
da doença, mas, ao mesmo tempo não tem como atestar que é um processo do
paciente, até porque, como falei, cada um é um caso. O organismo de cada um
depende de toda a vida anterior.
O certo é que vai parando, vai desgastando. Ainda
não vi ninguém que tenha ficado mais jovem a medida que o tempo passou.
A gente se sente meio juiz, dando uma sentença
de vida ou sobrevida. Será que depende de mim a melhora ou a piora? Mas ao
mesmo tempo só cabe dar uma qualidade de vida ou sobrevida, com alimentação
adequada, remédios, higiene e carinho, porque não tem como reverter o processo
do envelhecimento. Um dia vai estar melhor outro não. A cabeça é que vai
comandar o corpo que sua vez vai desgastando junto com a cabeça. É um mal-estar
muito grande esta sensação de não poder fazer nada e ainda ser cobrado.
Não sei como os outros filhos se sentem, só
sei que me sinto muito mal.