Gênio, comportamento, atividades


GÊNIOS E COMPORTAMENTOS
Fico pensando que se as pessoas não fossem tão difíceis e não tivessem gênio complicado, suas vidas seriam muito melhores. Não sei se já falei sobre isso, mas, meu pai e minha mãe tinham temperamento muito forte, eram difíceis com eles mesmos e de certa forma estão sofrendo as consequências disso. Não aceitavam opiniões, eram orgulhosos e não davam muito espaço para as coisas que não queriam ouvir ou partilhar.
Minha mãe tinha a personalidade muito forte e queria ser tratada de uma maneira que nem ela sabia como. Meu pai era muito orgulhoso, não admitia ter algum problema, preferia negar suas doenças. Tudo isso prejudicou muito.
Aparentemente meu pai tinha incontinência urinária. Quando se tocava no assunto ele desconversava e dizia que era normal. Lembro de ter conversado com a irmã dele a respeito e ele se recusava a fazer qualquer tipo de comentário ou procurar um médico para tratar especificamente desse assunto. Meu tio, que costumava acompanhá-lo nas visitas ao urologista, não estava preocupado com a situação, pois, nem entrava com ele no consultório. Tamanha era a resistência do meu pai em me manter alheio, que ele nem falava comigo quando tinha consulta ou quando tinha ido e como ele era lúcido e acompanhado pelo seu irmão que era da área de saúde, eu ficava tranquilo achando que tudo estava realmente nos conformes.
Minha mãe estava fora do peso e cada vez mais dentro de casa. Procurava se isolar e fingia que estava tudo bem. Quando eu tentava convencê-la a voltar às suas atividades ou a procurar se cuidar mais, ela dava a entender que estava vivendo do jeito que queria.
As pessoas que conviviam achavam tudo normal e também com o dia a dia atribulado, as coisas foram acontecendo, pois, ficava difícil “ler” meus pais com todo o temperamento deles e com o tempo corrido. Não posso nem me culpar, pois, tentei dentro do que podia e, nunca iria imaginar que estava acontecendo tal processo, até porque eram lúcidos, inteligentes e resolviam suas questões e além de mim, outras pessoas conviviam com eles e não percebiam ou nada falavam.
Quando a situação começa ou quando a gente começa a perceber tais mudanças, talvez seja tarde ou tudo acontece rápido demais. Eu não tinha como ficar todo o tempo ao lado: tinha que trabalhar, fazer minhas coisas. E como disse antes, eles tinham o convívio de outras pessoas também. Talvez alguém que convivesse 24 horas por dia, poderia até perceber as mudanças, que de certa maneira, começaram muito sutis, fora isso, não é tão fácil perceber.
E a personalidade deles contou muito também, pois acaba-se atribuindo o comportamento instável ao temperamento. E deu no que deu.

SORRISO
Mais um dia, mais uma visita.
Cheguei para visitá-los. Minha mãe estava de um lado do pátio com sua amiga, sentadas em uma cadeira comum e meu pai em sua poltrona, apesar de estar com boa aparência, o olhar estava distante.
Beijei-os, fiquei perto e tentei sempre buscar os mesmos assuntos e como resposta, as mesmas reações. A situação está estável, e isso é bom.
No final da visita, todos já tinham ido embora e geralmente fico mais algum tempo. Levei minha mãe para perto do meu pai e ela sentou-se de costas para ele, como está “alheia”, não havia reparado na presença dele e ele também não. Procurei fazer com que ela ficasse de frente para ele e finalmente eles se viram. Estávamos nós três, bem perto. Meu pai olhou para minha mãe e esboçou um sorriso, um sorriso cheio de carinho e ternura, um sorriso de amor, e estendeu a mão. Ela por sua vez retribuiu o sorriso e segurou na mão dele e com a outra fez um carinho em suas pernas. Parecia que eu não estava ali. Depois algum pouco tempo, minha mãe me olhou e sorriu. Senti-me próximo demais deles, mesmo sabendo que aquele momento era somente deles.
Deixei que se olhassem e se acarinhassem.
Pensei que mesmo depois de mais de cinquenta anos de convivência, que mesmo depois de uma vida tão cheia de coisas boas e outras não, que mesmo depois de uma demência senil e uma demência vascular, o sentimento que só eles entendem, continuava o mesmo ou até mais forte.

ANIVERSÁRIO
Domingo, dia do aniversário do meu pai. Durante a semana que antecedeu, familiar algum que poderia comparecer ou comemorar, ligou. Para mim não foi surpresa. Imagino como seria se eles chegassem lá e não o encontrassem, afinal eu poderia ter levado ele para dar um passeio, sendo uma data comemorativa e como ninguém mostrou interesse no que poderia acontecer, eu não teria obrigação de avisar. Mas o dia estava frio e chuvoso e sair com meu pai seria arriscado para saúde dele: sabemos que idosos não podem e não devem ficar expostos ao frio. Além disso, no dia anterior teve uma confraternização na casa e resolvi transferir o bolo de aniversário e a comemoração para mais adiante até para que acontecesse mais um evento, pois, nesta altura do campeonato, não dá para me preocupar com convenções, pois, o importante é fazer com que ele se distraia mais vezes.
O horário de visita correu praticamente como de costume. Em dias frios os idosos ficam nos quartos. Eu já estava achando que ninguém apareceria até que meus tios e primos chegaram, notoriamente mais por obrigação do que por consideração. Cumprimentos normais, as perguntas de sempre e a falta de ambiente, até porque quando se vai raramente é mais difícil de ficar à vontade. Quando se vai raramente, se esquece o que conversou antes e acaba falando as mesmas coisas: quando se vai raramente é sinal de que só está cumprindo uma obrigação, obrigação essa que sei que não é com meus pais, mas, sim, com a própria consciência. É o fingir que está próximo. Sem a menor necessidade.
Falaram em aniversário, mas não falaram em fazer ou participar de algum tipo de festa. E eu já passei da fase de me aborrecer com essas coisas.
Após o “de sempre” fiquei conversando com minha tia e deixei que meu tio e primos cumprissem com suas obrigações e foi até divertido, menos para meu pai, coitado, que, ao mesmo tempo que estava feliz em vê-los, estava de saco cheio da mesma situação de sempre e acabava "cochilando".
Enquanto falava com minha tia e minha mãe, dava para escutar o que eles conversavam, claro. Percebi que estava muito preocupados (!!!!) com a saúde mental do meu pai e começaram a debater quais seriam as melhores maneiras de ocupar a mente, distrair, exercitar a memória e coisas do tipo. Eu não sabia que a família era formada por terapeutas ocupacionais! Saía cada ideia, que a impressão que dava, na verdade, era a realidade: eles não tinham a menor noção de como está meu pai nem do que ele realmente precisa. Fiquei aguardando o “gran finale” do debate deles e imaginei o que poderia acontecer depois: iriam conversar comigo sobre as decisões tomadas com direito a receituário com instruções, manuais, indicação de profissionais, jogos e aparelhos e o principal, que eles se oferecessem para acompanhar todo o processo de exercícios que estavam propondo.
Para a minha surpresa, o gran finale foi o que eu imaginava: se despediram e foram embora! E eu, que estava pronto para receber as instruções e preparar um programa com a participação de todos para a melhor recuperação do meu pai, fiquei ali, sem entender, mas entendendo tudo. Eles tinham cumprido suas obrigações com suas consciências e pronto!
Se, ao invés de falarem, dedicassem um dia de visita por mês (eles comparecem uma vez a cada três meses, na melhor das hipóteses), com certeza faria um bem muito grande para meu pai, pois, ele sente a falta da presença deles e não dos conselhos.
É assim que funciona. Infelizmente.